Por Mário Lúcio Lopes, Marina T.F. Dellias e Vanessa M.C. Diana
Em 1989, a tese de doutorado do Professor Claudio R. Gallo revelou a diversidade de bactérias contaminantes de um processo industrial de fermentação alcoólica ao longo da safra. No total, 334 bactérias foram isoladas e exaustivamente avaliadas quanto às suas características bioquímicas e morfológicas. A maior parte destas bactérias se mostraram Gram positivas, morfologia de bastonetes e não esporuladas (Figura 1). Este trabalho serviu de base para muitos pesquisadores no Brasil e exterior sobre as principais bactérias que causam prejuízos na produção de etanol. Dentre as espécies mais frequentes identificadas deste estudo estavam os Lactobacillus fermentum e o L. helveticus. O primeiro ganhou notoriedade pela frequência com que tem sido isolado e identificado nas fermentações industriais, causando problemas de floculação do levedo, inibição da fermentação, produção de ácidos acético e láctico, manitol, entre outros. Já o L. helveticus já não teve a mesmo destaque. Trata-se de uma bactéria de metabolismo homofermentativo e produz essencialmente ácido láctico.
Figura 1. Diversidade de 334 bactérias isoladas de um processo industrial de produção de etanol e sua distribuição nos principais gêneros. Adaptado de Gallo (1989).
Mas, o que mudou desde aquela época? Será que as bactérias ainda são as mesmas? Ou novas espécies passaram a contaminar as fermentações? Muita coisa mudou desde o final da década de 80 até os dias atuais. A forma de colher a cana, a geometria e assepsia das dornas, novos produtos e princípios ativos foram desenvolvidos para combater a contaminação bacteriana, novas linhagens de leveduras foram selecionadas, assim como cepas mais adaptadas a cada processo. Todas estas mudanças certamente tiveram um impacto sobre o controle da contaminação bacteriana das fermentações.
Na safra 2022/23 nenhuma destilaria cliente Fermentec apresentou uma contaminação do vinho bruto acima de 108 bastonetes por mL na média de safra. De outro lado, 10% dos clientes trabalharam com uma média de safra abaixo de 106 bastonetes/mL de vinho bruto. Esse é resultado muito expressivo e importante (tabela 1). Estamos falando de diferenças da ordem de 100 vezes na população de bactérias contaminantes do vinho bruto. Além disso, podemos destacar que nas últimas três safras (2020 a 2022) tivemos uma frequência maior de destilarias trabalhando como contaminações entre 106 a 107 bastonetes/mL do que nas safras anteriores (2017 a 2019). Isso significa que as destilarias estão evoluindo na sua batalha contra as bactérias. É um passo de cada vez, mas na direção certa.
Tabela 1. Evolução do controle e redução da contaminação bacteriana no vinho bruto entre as usinas e destilarias clientes Fermentec nas últimas safras, agrupadas em quatro classes de acordo com as contagens de bastonetes no vinho bruto.
De qualquer forma, não podemos subestimar as bactérias. Ainda temos muito por fazer no sentido de conhecer a diversidade, prevenir e controlar estes contaminantes. Na falta de um bom controle, a contaminação bacteriana pode causar prejuízos consideráveis como demonstrado no estudo de caso da figura 2. Cada ponto em vermelho representa a média semanal da contaminação bacteriana do vinho bruto. O gráfico mostra uma correlação linear e negativa entre o aumento da contaminação e o rendimento da fermentação. Para cada ciclo log a mais na contaminação do vinho bruto há uma redução de 1,9% no rendimento da fermentação, o que equivale a uma perda de 19 mil litros de etanol por dia, para uma produção diária de 1.000 m3 de etanol.
Figura 2. Correlação negativa entre a contaminação bacteriana no vinho bruto e o rendimento da fermentação.
Mas como podemos avançar na prevenção e no controle da contaminação bacteriana? Uma das estratégias que existem atualmente é a tecnologia da metagenômica aplicada ao estudo da microbiota das fermentações. A metagenômica baseia-se na análise do material genético obtido diretamente de amostras ambientais, sem a necessidade de cultivo de microrganismos. Análises de comunidades bacterianas podem fornecer informações sobre a diversidade, abundância e potencial funcional de bactérias em um determinado ambiente e se aquelas bactérias estão residentes no processo ou não.
Para avaliar a diversidade de bactérias nos processos industriais de produção de açúcar e etanol, a metagenômica envolve o sequenciamento do DNA bacteriano obtido diretamente de amostras de caldo, xarope, açúcar, melaço, mosto, águas e vinho, sem a necessidade de plaqueamento e cultivo dos microrganismos. Esse DNA pode ser extraído e o segmento 16S rDNA sequenciado em larga-escala usando diferentes tecnologias disponíveis atualmente. Por sua vez, os dados das sequências resultantes podem então ser analisados e comparados com banco de dados internacionais para identificar as espécies bacterianas contaminantes, estimar sua abundância e avaliar seu potencial de causar prejuízos aos processos industriais, seja na produção de açúcar como de etanol. Um exemplo deste processo analítico é apresentado na figura 3.
Figura 3. Fluxo da análise de metagenômica aplicada para determinação da diversidade de bactérias contaminantes nas dornas de fermentação.
Além disso, a metagenômica pode nos ajudar a entender a composição das comunidades bacterianas “antes” e “após” a aplicação de antibióticos, biocidas ou tratamentos específicos para remoção de biofilmes, entre outros exemplos. Para cada amostra podemos analisar entre 5.000 e 50.000 fitas de DNA, o que é um número muito expressivo. Ao contrário das técnicas tradicionais de plaqueamento e cultivo de microrganismos, a metagenômica permite detectar e identificar microrganismos que não são cultiváveis ou que exigem condições especiais para cultivo, como por exemplo, temperaturas muito elevadas (acima de 50oC) e exigências nutricionais muito específicas. Os resultados da metagenômica também permite comparações baseadas na mesma sequência do DNA das bactérias entre laboratórios de diferentes países.
Nos últimos anos, os avanços na Biologia Molecular têm facilitado a descrição de novas espécies de bactérias e o número de registros tem subido exponencialmente, com destaque para os Lactobacillus. Recentemente, o gênero Lactobacillus foi reclassificado e dividido em 25 gêneros além da junção das famílias Lactobacillaceae e Leuconostocaceae. Esta divisão em um número maior de gêneros se fez necessária devido ao crescimento exponencial de novas espécies de Lactobacillus identificadas e descritas a cada ano, como mostra a Figura 4.
Novas espécies de bactérias têm sido identificadas cada vez mais rápido em comparação com as técnicas tradicionais baseadas no isolamento das colônias, caracterização dos perfis bioquímicos e morfológicos de cada microrganismo. Uma verdadeira revolução tem aberto as portas do conhecimento para compreendermos como a diversidade de bactérias se instala, sobrevive, compete e causa prejuízos na indústria, assim como, quais são os pontos fracos que podemos atacar para evitar tais contaminações.
Figura 4. Evolução do número de espécies de Lactobacillus descritas a cada ano.
Devido a este crescimento no número de espécies dentro do gênero Lactobacillus se fez necessário reorganizar a classificação taxonômica destas bactérias como demonstrado na tabela 2. O gênero Lactobacillus foi mantido, mas outros gêneros foram criados. Agora são 25 gêneros para agrupar 261 espécies de bactérias, lembrando que esse número continua subindo de forma exponencial.
A primeira espécie de Lactobacillus foi formalmente descrita em 1901, a partir das suas características morfológicas (células e colônias), cor ou reações bioquímicas. Até 1980, época em que foi realizado o trabalho do professor Gallo, tínhamos conhecimento de apenas 36 espécies de Lactobacillus, mas muita coisa mudou desde então. Pesquisas realizadas em diversos laboratórios utilizando técnicas de biologia molecular permitiram conhecer melhor a diversidade e a filogenia das bactérias lácticas e outras espécies. Os resultados destas pesquisas mostraram que os Lactobacillus, como eram classificados até então, se mostravam extremamente diversos em relação às suas características fenotípicas, ecológicas e genotípicas. Em resumo, as espécies historicamente classificadas e agrupadas como Lactobacillus diferiam muito umas das outras. A partir destas observações, especialistas decidiram modificar o gênero Lactobacillus e criar um grupo mais preciso e organizado. Apenas 35 espécies de bactérias continuaram classificadas como Lactobacillus. As demais deveriam ser reclassificadas e foram divididas em outros 23 novos gêneros. Felizmente, a maior parte dos nomes atuais se assemelham bastante à nomenclatura anterior e suas formas abreviadas permaneceram as mesmas.
Tabela 2. Nova classificação dos Lactobacillus em 25 gêneros. O nome do gênero original e alguns dos seus representantes foram mantidos.
Fonte: Zheng et al. 2020
Mas, o que aconteceu com a diversidade das bactérias contaminantes das fermentações sob a nova classificação taxonômica? Utilizando técnicas de metagenômica, temos observado a predominância de espécies de bactérias que até então eram pouco expressivas na fermentação alcoólica, como é o caso do Lactobacillus helveticus, L. amylovorus, L. acidophilus, L.delbrueckii e as bactérias do gênero Limosilactobacillus, dentre elas o L. panis e L. mucosae. Apesar de algumas diferenças, estas espécies apresentam características em comum como: habilidade para formar biofilmes, preferem temperaturas mais elevadas (37 – 45oC) para crescimento, tolerância a acidez e baixos pHs (Tabela 3).
Tabela 3. Espécies de Lactobacillus e Limosilactobacillus encontradas com mais frequência na safra 2022/23 pela técnica de metagenômica e suas principais características.
Dentre as características especificas, destacam-se a tolerância ao estresse oxidativo (L. panis), produção de exopolissacarideos (L. panis, L. mucosae e L. delbrueckii). A produção de exopolissacarideos protege as bactérias da ação de antibióticos, tolerância a desidratação e demais fatores abióticos de estresse.
Dentre as espécies de Lactobacillus detectadas pela metagenômica, destaca-se o L. delbrueckii. Esta é uma espécie conhecida, mas destaca-se pela sua ampla tolerância a temperaturas elevadas, com crescimento ótimo entre 40-44oC (cresce até 52oC).
O L. delbrueckii também tem sido relacionado com a produção de acetaldeído, o que pode levar a formação de ácido acético e acidificação do etanol.
O L. helveticus é outra bactéria tolerante a temperaturas elevadas, podendo crescer até 55oC.
O L. amylovorus cresce a 45oC e tem sido comum nas destilarias americanas cujo processo de produção de etanol está baseado no milho.
E o L. acidophilus que possui um crescimento ótimo em temperaturas de 37 a 45oC.
Todas estas bactérias tiveram em comum uma tolerância a temperaturas mais elevadas e produção de biofilmes. Em levantamento de literatura realizado por Dellias (2016) durante seu trabalho de avaliação de biofilmes na fermentação, foi destacado que as bactérias protegidas por biofilmes podem apresentar uma resistência de 100 a 1.000 vezes maior em comparação com as bactérias fora dos biofilmes como ilustrado na figura 5. Por essa razão, a remoção dos biofilmes e assepsia das dornas e tubulações traz tantos resultados positivos, seja na redução da contagem de bactérias no vinho bruto como na redução do consumo de antibacterianos e biocidas. Também é importante destacar que algumas espécies podem se adaptar melhor numa destilaria e trazer sérios problemas para a fermentação enquanto outras espécies se adaptam melhor em outros processos industriais. Controlar estes contaminantes e reduzir seu impacto na indústria está entre os nossos desafios. E a metagenômica está ao nosso alcance para identificar e monitorar estas bactérias.
Figura 5. Ilustração sobre o efeito protetor dos biofilmes contra a ação de antibióticos em comparação com as bactérias de vida livre.
Dentre as principais ações para prevenir e controlar a contaminação bacteriana nas fermentações industriais podemos citar:
- Monitorar a população de bactérias e produtos do seu metabolismo (ácido láctico, acético, manitol, dextrana);
- Conhecer a diversidade de bactérias e como ela afeta o processo (que tipo bactéria está instalada na fermentação e o que favorece a persistência destas bactérias);
- Identificar e remover pontos mortos e biofilmes (fontes de contaminação contínua);
- Assepsia das dornas e tubulações (para redução da carga de contaminantes);
- Ajustes de processo (temperatura, tratamento do levedo, mosto que possam favorecer a multiplicação das bactérias, sua entrada e instalação na fermentação);
- Efetividade na aplicação dos produtos antibacterianos (usar o produto certo e aplicado da forma correta);
- E, finalmente, usar leveduras industriais robustas como as cepas selecionadas (PE2, CAT1, FT858L e Fermel) e as personalizadas, que são mais competitivas e resistentes a contaminação bacteriana do que as leveduras de panificação.
Referências
Dellias MTF. Comunidade bacteriana dos biofilmes da fermentação alcoólica: estrutura, composição, suscetibilidade aos antimicrobianos e formação de biofilme em culturas puras. Tese de Doutorado. Universidade de São Paulo, Centro de Energia Nuclear na Agricultura, Piracicaba, 97 p. 2016.
Gallo CR. Determinação da microbiota bacteriana de mosto e de dornas na fermentação alcoólica. Tese de Doutorado. Universidade Estadual de Campinas, Faculdade de Engenharia de Alimentos, Campinas, 388 p. 1989.
Zheng J, Wittouck S, Salvetti E, Franz CMAP, Harris HMB, Mattarelli P, O’Toole PW, Pot B, Vandamme P, Walter J, Watanabe K, Wuyts S, Felis GE, Gänzle MG, Lebeer S. A taxonomic note on the genus Lactobacillus: Description of 23 novel genera, emended description of the genus Lactobacillus Beijerinck 1901, and union of Lactobacillaceae and Leuconostocaceae. Int J Syst Evol Microbiol. v. 70, n. 4, p.:2782-2858, 2020. doi: 10.1099/ijsem.0.004107.