Por Mário Lúcio Lopes
A técnica de coloração de Gram, desenvolvida pelo médico dinamarquês Hans Christian Joachim Gram em 1884, é um método amplamente reconhecido para diferenciar bactérias com diferentes estruturas de parede celular. Este procedimento envolve uma série cuidadosamente sequenciada de tratamentos com corantes e agentes fixadores específicos. Mas não é só isso. Para obter resultados confiáveis é necessário utilizar amostras que contenham células de bactérias viáveis, preferencialmente sob condições padronizadas de cultivo e seguir corretamente o procedimento.
As diferenças fundamentais na estrutura da parede celular entre bactérias Gram-positivas e Gram-negativas são cruciais para a técnica de coloração de Gram e também têm implicações em termos de resistência a antibióticos. A parede celular das bactérias Gram-positivas é composta principalmente por peptidoglicano. Trata-se de uma rede espessa formada por açúcares, aminoácidos e polissacarídeos que conferem resistência e rigidez à parede celular. Por sua vez, as Gram negativas possuem uma membrana externa composta de fosfolipídios e lipopolissacarídeos, assim como, uma camada de peptidoglicano que é muito mais fina em comparação com as Gram-positivas. Estas diferenças na estrutura e composição da parede celular (figura 1) levam à coloração de Gram diferenciada entre os dois grandes grupos de bactérias.
Figura 1. Diferenças na estrutura da parede celular de bactérias Gram-positivas e Gram-negativas.
Por que a coloração de Gram é importante?
A coloração de Gram permite distinguir dois grandes grupos de bactérias que se diferenciam pelas suas características da parede celular em Gram-positivas e Gram-negativas como vimos na figura acima. Alguns exemplos bem conhecidos de bactérias Gram-positivas são os Limosilactobacillus, Lactobacillus e Bacillus, enquanto que, do lado das Gram-negativas temos como exemplos as bactérias do gênero Acetobacter, Gluconobacter e Acinetobacter. Estes dois grupos diferem muito em relação à resposta aos antibacterianos utilizados no controle da contaminação das fermentações. Determinados princípios ativos que funcionam muito bem para as Gram-positivas acabam tendo pouco (ou nenhum) efeito sobre as Gram-negativas.
Como é o processo de coloração de Gram?
O processo começa com um esfregaço bacteriano fixado pelo calor, seguido por coloração com cristal violeta, um corante básico. Em seguida, o lugol (iodo) é aplicado, formando um complexo insolúvel com o cristal violeta. Após isso, ocorre a etapa crítica de descoloração com etanol-acetona. Devido à espessura do peptidoglicano e à ausência da membrana externa, as bactérias Gram-positivas retêm o corante violeta de cristal, aparecendo na microscopia como células roxas ou violetas. De outro lado, as bactérias Gram-negativas não conseguem reter o mesmo corante quando submetidas à descoloração com álcool-acetona. A cor é então substituída pelo corante vermelho de safranina ou fucsina, fazendo com que as células pareçam avermelhadas ou rosadas ao microscópio óptico.
Os cuidados durante o procedimento são essenciais para evitar resultados inespecíficos. A fixação adequada, o tempo preciso de coloração com cada corante, a descoloração controlada e a observação ao microscópio óptico são etapas cruciais. Além disso, a escolha e aplicação dos corantes são fundamentais. Os corantes básicos interagem com as estruturas celulares da bactéria, realçando sua morfologia para observação microscópica.
Ocorrem reações Inespecíficas na coloração de Gram? Como?
Sim, as colorações de Gram estão sujeitas às reações inespecíficas. Em algumas situações, as bactérias apresentam colorações inespecíficas de Gram devido a diversas razões, como a idade das culturas, variações na composição da parede celular ou técnicas de coloração inadequadas. Isso pode levar a resultados ambíguos ou incorretos na classificação de Gram. Isso pode acontecer especialmente quando trabalhamos com uma amostra coletada diretamente do ambiente ou do processo de fermentação.
Nestas situações as bactérias Gram-positivas que sofreram danos na sua parede celular e na permeabilidade da membrana devido aos teores alcoólicos mais elevados, o pH ácido do vinho, temperatura e até mesmo pelo uso de antibacterianos podem apresentar reações inespecíficas. Ou seja, faremos uma interpretação errada, acreditando que a fermentação está contaminada por bactérias Gram negativas quando na verdade se tratam de bactérias Gram positivas ou com danos na sua parede celular e na membrana plasmática, ou mesmo que entraram numa fase do ciclo celular que fica difícil determinar se são Gram-positivas ou negativas.
Além disso, deve-se considerar também o fato de que algumas bactérias são naturalmente Gram variáveis. Ou seja, a mesma espécie pode apresentar uma ambiguidade em relação à coloração de Gram, ora corando como Gram positiva e outras vezes como Gram negativa, assim como, sem corar.
Um exemplo de Gram variável são os próprios Bacillus que apresentam uma redução na espessura do peptidoglicano durante o crescimento e parte das células coram como Gram-negativas. Isso significa que dentro de um a mesma colônia de bactérias há de se observar algumas células que se distinguem das demais pela coloração de Gram. Algumas retendo mais o cristal violeta e outras retendo pouco.
Variações na coloração de Gram também podem ser observadas em células bacterianas que, geralmente são Gram-positivas, mas devido à injúria celular causada por antibacterianos que agem na parede celular, ou ainda por se tratarem de células velhas, perdem a habilidade de reter o cristal violeta. Nestas situações, teremos uma coloração inespecífica. Isso levará à interpretação incorreta dos resultados, influenciando na decisão de que produto usar para controlar a contaminação bacteriana. E pode acabar saindo caro para a destilaria.
E agora? Então não devo fazer a coloração de Gram?
Veja, a coloração de Gram é uma técnica valiosa na microbiologia. Se realizada corretamente e dentro dos seus princípios faremos uma correta identificação das bactérias presentes na fermentação distinguindo-as com base nas diferenças em suas paredes celulares. Para obter resultados precisos é crucial seguir os procedimentos com cuidado e atenção aos detalhes, como será pontuado a seguir:
• Evite análises diretas do vinho ao final da fermentação, principalmente se você tem usado agentes antibacterianos que causam injúrias na parede celular das bactérias. Este é o caso das penicilinas, ionofóros e derivados do lúpulo;
• Faça um plaqueamento, cultivo das bactérias e analise as colônias formadas. Use um meio de cultivo e condições que permitam o crescimento de bactérias Gram-positivas e Gram-negativas. Analise as colônias individualmente e estabeleça a proporção de colônias em cada resultado de Gram. Não use colônias velhas ou placas armazenadas por muitos dias;
• Quando for fazer a coloração de Gram use pelo menos dois controles (ou referências), um cultivo de bactéria Gram positiva (Ex.: Limosilactobacillus fermentum) e outro de bactéria Gram negativa (Ex.: Acetobacter pasteurianus). Se houver algum problema com o método ou reagentes, você terá a chance de verificar e descobrir. Do contrário, sem as respectivas referências, você acabará aceitando os resultados da análise, estejam elas corretas ou não.
Uma alternativa para esclarecer as dúvidas sobre a população de bactérias ser (ou não) Gram positiva ou negativa é realizar a análise de metagenômica.
Como a metagenômica pode revelar quem são os contaminantes da minha fermentação?
A metagenômica é uma ferramenta molecular que revolucionou a forma como temos estudado a diversidade das bactérias nas fermentações alcoólicas. Análises de metagenômica têm mostrado que a maior parte das contaminações bacterianas na fermentação alcoólica estão relacionadas com bactérias Gram-positivas. A partir de 80 amostras de vinho bruto coletadas de 14 destilarias, apenas 1,25% apresentaram uma frequência de Gram-negativas acima de 25% da população total de bactérias.
Em 12,50% das amostras, foram observadas frequências entre cinco e 25% de Gram-negativas e em 18,75% das amostras de vinho bruto estas bactérias representavam entre 1 e 5% da população de bactérias da fermentação. A maior parte das fermentações (67,50%) apresentou espécies Gram-negativas constituindo menos de 1% da população (Figura 2). De qualquer forma, não podemos subestimar as bactérias Gram-negativas uma vez que possuem potencial para causar prejuízos muito elevados na fermentação, como já tivemos a oportunidade de demonstrar.
Figura 2. Distribuição das contaminações industriais em quatro classes (< 1%, 1 a 5%, 5 a 25% e > 25% de bactérias Gram-negativas) a partir de 80 amostras de vinho bruto coletadas de 14 usinas e analisadas pela técnica de metagenômica.
Mas é preciso medir corretamente e gerar números confiáveis. Utilizando de forma correta as metodologias e associando diferentes tecnologias para explorar a constituição das comunidades bacterianas, podemos identificar, mapear e monitorar os contaminantes das fermentações industriais. Além de verificar se essas bactérias são Gram-positivas ou Gram-negativas, é possível medir a abundância relativa e se estão sendo adotadas as práticas corretas para reduzir o impacto de ambas.
Bônus: como posso saber se estou fazendo corretamente a coloração de Gram?
Ah, essa é uma dica valiosa. Faça o seguinte: ao final de cada etapa da coloração de Gram cheque o resultado da coloração como exemplificado na tabela 1. Use as bactérias Gram-positivas e Gram-negativas como controle ou referência para o seu procedimento e então trabalhe com as amostras. Se houver algum problema com o procedimento e reagentes, os resultados serão diferentes. Outra dica importante é trabalhar com culturas ativas, frescas ou coletadas durante seu cultivo e sem os estresses causados por agentes físicos, químicos ou mesmo biológicos.