O ano de 2024 apresentou-se como um dos mais desafiadores para o setor sucroalcooleiro, principalmente devido às condições climáticas severas. O excesso de seca, combinado com a ocorrência frequente de incêndios, comprometeu significativamente a qualidade da matéria-prima. Essas adversidades climáticas apresentaram um cenário árduo para a indústria, que enfrentou enormes desafios na busca de elevados rendimentos e eficiência produtiva.
Diante desse cenário de adversidade, o setor precisou ser resiliente buscando soluções para mitigar os impactos causados pela perda de produtividade e garantir, tanto quanto possível, a disponibilidade de açúcar e etanol para os mercados interno e externo. A safra de 2024 será lembrada como um período de teste para a capacidade do setor em se adaptar e encontrar oportunidades nos momentos desafio.
Desempenho da Safra
Os dados a seguir refletem uma análise precisa da safra 2024 em comparação a 2023:
Principais fatores que afetaram a produção
- Seca e altas temperaturas: a seca prolongada e temperaturas elevadas comprometeram o desenvolvimento dos canaviais, reduzindo a produtividade agrícola (TCH) em 8,1% e aumentando o AR da cana em 17,3%;
- Queimadas: as queimadas afetaram diversas regiões produtoras, reduzindo a disponibilidade de cana para processamento e impactando o RTC em 0,51% em comparação com a safra passada;
- Redução na produção de açúcar: a produção de açúcar caiu 5,53% influenciada pela menor moagem de cana e pelo impacto das queimadas sobre a qualidade da matéria-prima;
- Estabilidade na Produção de Etanol: a produção de etanol permaneceu estável, com crescimento leve de 0,5%, apesar do maior direcionamento da cana para a produção de açúcar;
- Maior disponibilidade de tempo: o tempo de aproveitamento das unidades industriais apresentou um aumento de 1,12 pontos percentuais, refletindo a seca durante o período da colheita.
Indústria
Um ano de ajustes e impactos operacionais
O ano de 2024 apresentou uma série de desafios para o setor sucroenergético, afetando diretamente o RTC médio, que registrou uma queda de 0,47 pontos percentuais em comparação a 2023. No entanto, as ações estratégicas implementadas foram fundamentais para minimizar o impacto, permitindo que esse indicador se mantivesse dentro da média histórica dos últimos seis anos, sinalizando a resiliência do setor diante das adversidades.
Mais de 70% das usinas reportaram uma diminuição no RTC com a maior redução, atingindo expressivos 2,7 pontos percentuais. Por outro lado, 27% das unidades conseguiram reverter a situação e melhorar seus resultados, com destaque para uma usina que registrou um aumento de 1,14 pontos percentuais. Essas unidades demonstraram melhorias importantes, apresentando ganhos médios na extração (+0,11 p.p.), no RGD (+0,08 p.p.) e no SJM (+0,62 p.p.), além de uma significativa redução de 0,4 p.p. nas Perdas Indeterminadas.
Um aspecto relevante a ser destacado é que essas usinas apresentaram um aumento menor no AR da cana em comparação àquelas que enfrentaram queda no RTC. Isso sugere que o impacto adverso do clima e das queimadas foi menos severo nessas unidades localizadas em áreas onde a seca e as queimadas foram menos rigorosas.
Queda na extração: fator importante para explicar o baixo RTC
A extração de açúcar foi um dos principais fatores responsável pela queda do RTC em 2024, com uma redução de 0,14 p.p.. Essa tendência foi observada ao longo de todo o ano com 68% das usinas reportando desempenho inferior ao de 2023. Em setembro, um desvio significativo na queda da extração foi identificado possivelmente relacionado aos impactos das queimadas.
Além disso, as perdas em águas residuais cresceram 0,1 p.p., um aumento expressivo de 45,69%, com pico em novembro, quando o volume perdido foi três vezes maior do que no mesmo mês de 2023. Esse aumento está associado ao menor tempo de aproveitamento industrial neste período causado por chuvas mais intensas.
Indicadores do RTC em 2024
As perdas indeterminadas se tornam o maior fator de perda
As perdas indeterminadas cresceram 0,19 p.p., tornando-se a principal fonte de impacto negativo no RTC em 2024. Cerca de 63% das usinas apresentaram aumento nesse indicador, com uma unidade registrando um aumento recorde de 1,62 p.p.
Esse crescimento pode ser explicado pelo aumento das dificuldades operacionais ocasionados pela queda da qualidade da matéria-prima. Análise de regressão multivariada mostrou que cada incremento de 0,1 p.p. no AR da cana resultou em uma redução de 0,14 p.p. no RTC.
A relação entre SJM e RTC: um reflexo da pureza da cana
O SJM apresentou uma redução de 1 ponto percentual, o que afetou diretamente a recuperação de açúcar na fábrica. Embora parte do açúcar não recuperado tenha sido parcialmente aproveitado pela fermentação, o aumento das perdas no processo de fabricação do açúcar influenciou negativamente as perdas indeterminadas. Esse fenômeno foi particularmente mais pronunciado entre agosto e outubro, quando o impacto das queimadas foi mais significativo.
RTC digestor x RTC prensa: diferenças e ajustes
Em 2024, a diferença entre os métodos de medição do RTC (digestor e prensa) se acentuou devido ao aumento da diferença do ART da cana medido pelo método do digestor e método da prensa. A cada 0,1 p.p. de diferença entre o ART digestor e ART prensa, o RTC da prensa apresentou um aumento médio de 0,6 p.p. em relação ao RTC digestor. Essa disparidade reforça que a qualidade da matéria-prima distorce os resultados entre as metodologias
Agrícola
Impactos climáticos e produtividade
Cerca de 73% das unidades produtoras registraram uma redução no TCH, refletindo os desafios enfrentados na safra de 2024. A combinação de estiagem, altas temperaturas e queimadas resultou em uma diminuição de produtividade da cana de açúcar (TCH) de 8,1%, passando de 88,74 t/ha para 81,56 t/ha.
Concentração de açúcares e impacto na produção
O clima seco contribuiu para um aumento na concentração de AT_ART, resultando em uma elevação de 2% no digestor e 1,25% na prensa. A diferença entre os métodos de análise foi ampliado especialmente em razão do aumento nos teores de açúcares redutores. Em média, a diferença entre os resultados obtidos pelos dois métodos cresceu de 0,03 p.p. em 2023 para 0,13 p.p. em 2024, refletindo uma elevação de 0,1 p.p. ao longo desses dois anos, principalmente como consequência da diferença dos valores de AR entre digestor e prensa. A diferença de AR mensurado pelas duas metodologias aumentou de 0,3 p.p. em 2023 para 0,42 p.p. em 2024, um incremento de 0,12 p.p. Essa variação se deve, em parte, ao fato de que no método da prensa, o AR é estimado por fórmulas matemáticas que frequentemente subestimam os teores reais, especialmente durante períodos de elevada concentração de glicose e frutose.
Na Figura 1, estão apresentadas as médias de AR%CANA ao longo dos meses de 2024, onde é possível observar as variações nos resultados obtidos por meio das duas metodologias. Além disso, as queimadas prolongaram a entrega da cana em 84%, o que favoreceu sua deterioração. Como resultado, a maioria dos meses de 2024 registrou um AR%CANA superior ao de 2023, com destaque para os meses de agosto, setembro e outubro (conforme demonstrado na Figura 2).
No acumulado de 2024, 77% das unidades observaram um aumento no AR, com 71% delas registrando valores superiores a 1 p.p., destacando-se o desafio adicional imposto pelas condições climáticas adversas.
Desafios para a produção de açúcar
O aumento do AR% CANA comprometeu a eficiência industrial, reduzindo o mix de produção de açúcar. As regiões de Ribeirão Preto e São José do Rio Preto foram as mais afetadas, sendo que esta última teve um aumento de 48% no AR% CANA e reduziu o mix para açúcar em 4,86 pontos percentuais.
Figura 1. Comparação da média do AR%CANA dos clientes Fermentec analisados pelos métodos do digestor e da prensa em 2024. Faixa mais clara no gráfico indica o intervalo com 95% de confiança.
Figura 2. Comparação do Teor de AR da cana analisado pelo método do digestor médio ao longo dos meses de 2023 em comparação com 2024.
Desenvolvimento de um índice de qualidade da cana-de-açúcar com aprendizado de máquina não supervisionado
Para facilitar o monitoramento da qualidade da matéria-prima e a comparação entre usinas nesta safra, foi desenvolvido um indicador único que resume diversos aspectos da qualidade da cana. Esse indicador foi criado usando a Análise Fatorial por Componentes Principais (PCA), uma técnica de aprendizado de máquina que organiza dados complexos ao identificar padrões e reduzir a dimensionalidade. No contexto das usinas, a PCA destacou quatro fatores que explicam 77% da variância nos dados da qualidade da cana: fator 1 relacionado quantidade de açúcar totais (ART e ATR); fator 2, relacionado a sacarose e presença de açúcares redutores; fatores 3 e 4 que refletem características indesejáveis como fibra, impureza vegetal e mineral, além da presença de broca e dextrana. Esses fatores foram combinados para criar um índice prático, permitindo comparações diretas da qualidade da matéria-prima entre usinas, facilitando assim a tomada de decisões.
De posse desse índice, as usinas foram separadas em três grupos: Grupo A (25% das usinas com as melhores pontuações), Grupo B (50% intermediárias) e Grupo C (25% com as menores pontuações). No quadro 3, são apresentadas as características que mais distinguem esses grupos.
Quadro 1. Principais características dos grupos formados de acordo com o Índice de Qualidade de Cana Fermentec.
Agrupamento de acordo com o RTC
As usinas foram classificadas em quatro grupos com base no RTC, de acordo com percentis: Grupo A (≥94,65%), Grupo B (93,28% – 94,65%), Grupo C (91,31% – 93,28%), e Grupo D (≤91,31%). A análise focou em unidades produtoras de açúcar e álcool. No quadro 5, foram destacados os principais fatores que diferenciam esses grupos.
Conclusão
O que aprendemos em 2024?
A safra de 2024 destacou-se como uma das mais desafiadoras da história recente, em grande parte devido ao impacto do clima extremo e das queimadas. Embora a remuneração do açúcar estivesse melhor do que a do etanol, as adversidades enfrentadas comprometeram a qualidade da cana, limitando a capacidade de diversificar a produção. Reduções na extração, aumento das perdas em águas residuais e crescimento das perdas indeterminadas contribuíram significativamente para a queda no indicador RTC.
Entretanto, a superação desses desafios passa por um comprometimento com a inovação e aprimoramento tecnológico. Para 2025, o foco está voltado para o aprimoramento do monitoramento da qualidade da cana, utilizando equipamentos analíticos de processos em tempo real. Isso permitirá não só quantificações mais precisas na entrada das matérias-primas, mas também ajustes operacionais rápidos e automáticos, essenciais para otimizar a produção industrial.
A biotecnologia ocupa um lugar de destaque nesse cenário de transformação. O desenvolvimento de novas leveduras personalizadas, especialmente adaptadas para resistir aos estresses da fermentação, promete melhorar significativamente a eficiência dos processos. Paralelamente, avanços em metagenômica bacteriana permitem uma identificação precisa de contaminantes para otimizar as fermentações e também para produção de açúcar, orientando práticas operacionais mais assépticas e eficientes.
Entretanto, sem profissionais capacitados, o investimento em tecnologia perde seu potencial. É importante capacitar os profissionais para o uso das novas tecnologias, assegurando que a expertise humana caminhe lado a lado com os avanços tecnológicos.
Tecnologia de ponta e soluções em biotecnologia trazem uma vantagem estratégica: quanto mais informações e tecnologias avançadas uma indústria possui, mais rápida é a sua capacidade de responder e solucionar problemas, resultando em maior eficiência operacional. Assim, aqueles que estão na vanguarda da inovação colhem vantagens consideráveis frente a ambientes adversos.